A Rainha do Castelo de Ar #Crítica


Um fenômeno de Stieg Larsson

Quis custodiet ipsos custodes? é uma frase em latim atribuída ao poeta romano Juvenal, traduzido de várias formas como "Quem vigia os vigilantes?", "Quem vigia os vigias?", "Quem guardará os guardas?", ou similares.

O problema essencial foi proposto por Platão, em seu livro A República, sua obra sobre governo e moralidade. A sociedade perfeita como descrita por Sócrates, o personagem principal da obra, depende de uma sociedade movida por hierarquias sociais, onde cada um tem a sua função específica segundo a sua classe. Com isso, essa sociedade seria baseada em regras estabelecidas e fixas, cabendo aos camponeses o trabalho no campo, as mulheres a educação de seus filhos, aos escravos trabalho pesado, e aos homens de posses munidos de um poder elitista administrariam as cidades. Por fim, teríamos uma classe guardiã para proteger a cidade e fiscalizar as leis. 

Assim, uma pergunta é feita a Sócrates: "Quem guardará os guardiões?" ou, "Quem irá nos proteger dos protetores?" A resposta de Platão para esta pergunta é que os guardiões irão se proteger deles mesmos. Nós devemos contar a eles uma "mentira carinhosa." A mentira carinhosa lhes dirá que eles são melhores do que os que eles servem e é então, responsabilidades deles guardar e proteger aqueles que são menos do que eles mesmos. Nós instigaremos neles um desgosto por poder ou privilégio; eles irão mandar porque eles acham ser correto, não porque eles desejam.

Ao ler “A Rainha do Castelo de Ar” essa frase histórica martelava em minha cabeça constantemente. Era impossível pensar que o enredo dessa obra fantástica terminaria dessa forma, com uma conspiração nacional, com tantas reviravoltas político-sociais, e com debates calorosos no modo de como nos vemos como sociedade, cidadãos, civis comuns. Desde já, me sinto gratificado por me deixar entreter com a magnífica obra de Stieg Larsson. É uma pena que esse gênio tenha nos deixado, por que depois de 1800 páginas viradas, a sensação de quero mais é enorme.

Dentre as ótimas lembranças que levo desse livro, fica a genialidade de Larsson em descrever situações corriqueiras, de elaborar um enredo construtivo onde os arcos da história são resolvidos sem muita demora, e onde as reviravoltas são constantes e surpreendentes. É impossível se perder no emaranhado de acontecimentos, Larsson sempre está nos guiando bem, em meio a esse labirinto de investigações e provas verdadeiras e falsas.

E mais uma vez, não poderia esquecer das personagens tão marcantes dessa obra... Mikael Blomkivst, é um homem de valores, de caráter robusto e de temperamento forte, um investigador nato que se preocupa com o bem estar social e que defende uma ideia até a morte. Me atrevo a dizer que ele é um auto-retrato do próprio Stieg Larsson. Gostei muito da desenvoltura de Annika Gianinni nesse livro, ganho espaço e foi fundamental no desfecho da obra. Érika Berger me decepcionou um pouco, acho que seu arco na história ficou confuso e esse pode ser o ponto negativo do livro. Faço menção honrosa a jan Bublanski e aos seus detevives colaboradores, a Holger Palmgrem, Dragan Armanjski, e a Malu Ericksson e a “turma” da Millenium.

Mas, como sempre a minha atenção recai sobre uma das personagens mais fantásticas já criadas: Lisbeth Salander. É impossível não se render aos seus caprichos, sua genialidade, seu humor negro e ao seu senso de anti-social. Lisbeth é o elo que liga o inicio desse texto. Larsson desenvolveu em Lisbeth Salander a imagem do ser humano totalmente marginalizado pelo sistema social, e que se vê obrigado a literalmente improvisar nas horas difíceis. E o que nós, como sociedade fazemos? Simples, viramos as costas e marginalizamos ainda mais essas pessoas. Lisbeth se tornou o que é, não por escolha própria mas, por que a sociedade e principalmente as autoridades viraram as costas pra ela. É o típico caso onde todos nós viram as costas! E depois quando algo catastrófico acontece, somos os primeiros hipócritas sem escrúpulos a protestar e condenar. 

Considero Lisbeth Salander uma heroína dos tempos modernos, alguém que usa o sarcasmo (quando ela fala!), o anonimato e as brechas na lei para fazer justiça, para punir aqueles que a caçaram injustamente. Sou um cara que odeia a questão do politicamente correto, considero tal tema uma balela total, e encontrei em Lisbeth Salander a prova de que existem pessoas que compartilham da minha opinião, de que viver em sociedade é mais do que viver numa sociedade de regras ultrapassadas, injustas e hipócritas. 

Com graves denuncias ao modo como os serviços secretos funcionam querendo dominar a vida dos civis, denúncias ao mercado de prostituição do leste Europeu, com o alerta do trabalho infantil sustentado por um mercado negro de fanfarrões do governo e da imprensa, e com um enredo nuca antes visto neste gênero de leitura, “A Rainha do castelo de Ar” encerra de forma magistral a Trilogia Millenium. 

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